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Ensaio: A infeliz tradução brasileira do ODS 6 – Água potável e saneamento

Por Marcelo Miki, membro da Câmara Temática da ABES de Tratamento de Esgotos.

Introdução

Entre as grandes ameaças às gerações futuras estão as mudanças climáticas e o significativo esgotamento dos recursos naturais. De forma a confrontar este quadro apocalíptico, iniciativas globais vêm sendo tomadas a fim de tornar o mundo mais sustentável.

Dentro desse esforço mundial, destaca-se a Plataforma da Agenda 2030 da ONU – Organização das Nacões Unidas, com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável-ODS, que para a alegria dos profissionais da Engenharia Sanitária e Ambiental, incluiu o Objetivo 6: Água Potável e Saneamento.

O ODS 6 enfatiza a sustentabilidade, trazendo à tona um assunto pouco debatido na sociedade brasileira, tanto na agenda política quanto entre os pleitos da população. Assim, o ODS 6 fez com que a mídia abordasse este assunto tão esquecido pela sociedade, em um país onde a metade da população ainda não tem serviços de coleta de esgoto sanitário.

Mas, ao mesmo tempo em que se verifica um destaque nunca antes visto na sociedade brasileira, já que é um tema relevante, percebe-se que o ODS 6 não tem sido discutido adequadamente e de forma profunda nos círculos profissionais mais especializados.

A reflexão que o presente artigo se propõe a fazer parte de um ponto básico e um tanto primário demais que é a tradução incorreta do ODS 6 – Água Potável e Saneamento. Pretende, ainda, esclarecer que a tradução brasileira desse OD6 não corresponde à realidade, à intenção original do termo e, consequentemente, altera o significado original.

A intenção deste ensaio não é, de forma alguma, denegrir uma categoria profissional, instituição ou plataforma política, mas sim trazer luz ao debate, que deve ser o foco.

Há um velho ditado italiano que diz “traduttore, traditore”, que pode haver diferentes interpretações, tanto indo do sarcasmo como para o alerta quando nos deparamos com duas línguas, em que o que se quer dizer na língua de partida não tem o equivalente literal na língua de chegada. Uma tradução inadequada não deixa de ser uma traição.

As mudanças são cada vez mais rápidas e os termos ambíguos, incertos e superficiais colaboram para a desinformação do público e, como consequência, perde-se o foco e gasta-se energia desnecessária em discussões improdutivas.

O problema

Em nosso meio, a Agenda 2030 estabelecida pela ONU – Organização da Nações Unidas em setembro de 2015 está bem difundida e, desde então, os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS vem sendo divulgados em inúmeras apresentações.

O OD – 6 estabelece: Água Potável e Saneamento.

 
Figura 1: ODS 6 em português: Água Potável e Saneamento

Para a ONU/United Nations – UN, o termo original para o SGD – Sustainable Goal Development 6 é Clean Water and Sanitation.

 
Figura 2: ODS 6 em Inglês: Clean Water and Sanitation

Este ensaio pretende discutir a tradução do termo em inglês “sanitation” para o termo em português “saneamento”.

Antes de expor argumentos contra esta tradução, cabe ilustrar o termo adotado em espanhol. Em espanhol, o “Objetivo de Desarrollo Sostenible 6” é: Agua limpia y saneamiento.

Figura 3: ODS 6 em espanhol: Agua Limpia e Saneamiento
 
Aparentemente, de forma superficial, não haveria motivos para afirmar que houve uma traição na tradução do termo “sanitation” para “saneamento”. Mas, quem trabalha no segmento da Engenharia Sanitária e Ambiental deveria saber ou perceber que esta tradução não corresponde à intenção original.

No Brasil, o termo em português “saneamento” tem um significado distinto do termo “saneamiento” em espanhol. Atualmente, muito se discute a respeito do Marco Legal do Saneamento, mas certos conceitos são deixados de lado pois outros temas despertam mais interesse como, por exemplo, a privatização.

A Lei Federal no 11.445, 5/01/2007 tornou o termo “saneamento básico” mais abrangente, pois passou a incluir as seguintes atividades:

● abastecimento de água;

● esgotamento sanitário;

● manejo dos resíduos sólidos urbanos;

● drenagem de águas pluviais.

No Brasil o termo “saneamento” tem uma abrangência muito mais ampla que seus correspondentes em outras línguas. Logo, se o termo “saneamento básico” é tão abrangente, muito mais será o termo “saneamento”.

Já o termo “esgotamento sanitário” inclui a coleta, o tratamento e a disposição final de seus resíduos.

Em 2010, anterior ao estabelecimento dos ODs, a Assembleia Geral da Nações Unidas e Conselho de Direitos Humanos do DHAES reconheceram o “direito humano à água e ao esgotamento sanitário, expressão devidamente traduzida do inglês “right to water and sanitation” pelo Professor Leo Heller, relator da ONU. Infelizmente, na transposição dos termos dos Direitos Humanos para os ODS, perdeu-se o termo “esgotamento sanitário”.

Consequências do uso do termo inadequado

A crítica que se faz ao uso de um termo inadequado como “saneamento” é a falta de foco na abordagem de um problema.

Sabe-se que a questão do esgotamento sanitário no Brasil, onde aproximadamente metade da população não tem acesso à coleta de esgoto, é crítica. Quando se afirma que os esforços devem ser direcionados ao fornecimento dos serviços de coleta e tratamento de esgoto, a intenção é destacar esta atividade.

Quando o conceito de esgotamento sanitário se dilui nos termos “saneamento” ou “saneamento básico”, perde-se o foco do problema. Aplicam-se recursos e esforços para promover o saneamento básico com a única meta de fornecer 100% de água potável, esquecendo que os serviços de coleta, tratamento e disposição final dos resíduos do esgoto são cruciais para a saúde pública.

Não basta apenas ampliar o acesso à água potável, se concomitantemente não houver também a ampliação do esgotamento sanitário.

Em negociações para obter financiamento de órgãos internacionais ou em acordos de cooperação, o uso inadequado do termo “saneamento” resulta em interpretações errôneas entre as partes causadas por esta falta de foco. Em espanhol, devido à mesma sonoridade do termo, a falta de foco pode levar à tremenda perda de tempo e a juízos precipitados podem ocorrer. Pode-se, por exemplo, perder uma grande quantidade de tempo em reuniões entre órgãos financiadores internacionais, cujo idioma dos interlocutores é o espanhol ou o inglês tendo do outro lado da mesa, , e companhias operadoras que podem entender que um programa de financiamento em “saneamento” pode incluir um programa de redução de perdas na rede de abastecimento de água.

Inação dos profissionais da área

Mas, se podemos culpar um tradutor traidor, por que os profissionais da Engenharia Sanitária e Ambiental não debatem o uso deste termo? Não há quem questione? Pode-se questionar? Não seria muita pretensão questionar a ONU?

Por parte da Academia, sabe-se que o inglês é mais utilizado que o português na elaboração de artigos técnicos que fornecem pontuação acadêmica e demonstração da atividade profissional. As publicações técnicas em português não dão a devida pontuação acadêmica e não há um incentivo para os pesquisadores escreverem em português. Assim, é compreensível, mas não justificável que a própria Academia não dê a devida importância à utilização de termos adequados em textos técnico e científicos.

Mas, a tradição do uso inadequado de termos em nosso meio técnico é algo que incomoda quem trabalha na área, pois a repetição exaustiva de termos inadequados acaba entrando em nosso vocabulário fazendo com que os erros se perpetuem. Por exemplo, um termo inadequado e muito difundido em nosso meio é o termo sólidos suspensos, traduzido do termo do inglês “suspended solids”. Em química, sabe-se que o termo correto a ser utilizado é “sólidos em suspensão”. Os sólidos suspensos seriam aqueles que ficariam flutuando no espaço por forças gravitacionais ou por fios.

Há quem possa argumentar que toda esta discussão é exagerada. O que deve ser enfatizado é que cada palavra tem o seu próprio significado e em atividades como elaboração de leis e normas técnicas, deve-se ter um cuidado redobrado para utilizá-las, para não provocar ambiguidade ou ainda trair o significado do termo na língua original. As traduções devem ser revisadas e discutidas por técnicos da área a fim de se evitar ao máximo as ambiguidades em textos normativos, em leis e contratos.

Quem trabalha no segmento esgotamento sanitário sabe que esta atividade não recebe a mesma atenção que o segmento do abastecimento de água. E, neste momento em que há grande ênfase nesse campo do conhecimento, não se entende a falta de autoestima e engajamento de profissionais do setor que aceitam a tradução deste termo sem discussão.

Conclusão

Apesar da Agenda 2030 ter dado um destaque inusitado para a Engenharia Sanitária e Ambiental, acredita-se que a tradução do OD 6 deveria ser mudada de Água Potável e Saneamento para Água Potável e Esgotamento Sanitário.

Num país onde a falta de saneamento básico é premente, há uma carência ainda maior nos serviços de esgotamento sanitário. A infraestrutura de coleta de esgoto sanitário e as estações de tratamento de esgoto são insuficientes e muitas vezes inexistentes. O Brasil se ressente da falta de infraestrutura de macro e micro drenagem de águas pluviais, que se não estiverem devidamente implantadas, impactam negativamente em todo o sistema de esgotamento sanitário.

Investir em saneamento básico não se restringe ao abastecimento público de água, pois todas as outras atividades estão incluídas no Marco Legal do Saneamento. Não se deve ter em mente o conceito simplista de que investir em saneamento básico significa apenas o abastecimento público de água. A adoção de termos muito genéricos e abrangentes não contribui para o foco da discussão.

Publicado originalmente no site Roda D’água

*Marcelo Miki é Mestre e Engenheiro Civil pela Universidade de São Paulo – USP Gerente de Departamento na Superintendência de Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação da da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP. 

 
 
 
 

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